Maiúsculas

. domingo, 27 de maio de 2012



À medida que o pano cai e o público sai, a dúvida sempre persiste no ar. Do que sabem ser um intervalo saltam sentimentos, paixões, acesas dúvidas, quiçá existenciais. Sobre o herói, a vida, a acção. Morto ou vivo? Será a altura do penhasco fatal? Não, não pode ter sobrevivido ao tiroteio em Bagdade. Se bem que conseguiu ultrapassar os rápidos de Ladakh em direcção ao pico de Changtse, o grande glaciar de Rongbuk impõe-se na viagem, imponente na sua brilhante resplandecência, barrando com as suas escarpas geladas a entrada no sagrado mosteiro, onde porventura estará o cálice que tanto procura. Mas, interlúdio, correm pela neve homens armados, carabinas ao ombro. Velhos lobos da guerra, cicatrizes de baioneta não lhes são estranhas, longos cabelos ao vento.
Não há resolução possível, encurralado está o herói, e prepara-se para o seu último sorriso, um trejeito de chapéu, um piscar de olhos ao público.
À medida que o pano cai e o público sai, a dúvida sempre persiste no ar. Do que sabem ser um intervalo saltam sentimentos, paixões, acesas dúvidas, quiçá existenciais. Sobre o tempo, o espaço, sobre a curvada abóbada de união e as respostas a que gigantes cedem as omoplatas. Enquanto pisca o herói o olho há todo o tempo do mundo de mergulhar profundamente na imensurável íris, e pedir até às pontas do reflexo o que há do outro lado. Uma câmara? Talvez a extensão dos Himalaias, espraiados por todo o horizonte, longos e distantes. Talvez a cara dos malfeitores, tão determinados a roubarem ao herói o seu protagonismo. Talvez até nos encontremos onde tudo começou, de lados opostos, de tempos inversos.
Bate no vidro uma senhora com ricas vestimentas, ostentando veludo e cigarrilha. A sua expressão preocupada não deixa lugar a dúvidas. Anunciam os jornais que o malfadado cálice foi roubado, e o corpo do herói encontrado sem vida por um qualquer vale sem nome. Desfigurado de uma qualquer batalha perdida desde o inicio, as Maiúsculas bordadas a fio de ouro no interior do seu chapéu ensanguentado não deixavam lugar a dúvidas. Chorava-se o seu destino, chorava-se a perda do então mais valioso tesouro de toda a humanidade.
Pousa a pasta na estação do primeiro posto europeu na Turquia um distinto magnata. Cabelos grisalhos puxados para trás a brilhantina, gravata bem ajustada, e fato limpo à mais pequena fibra. Fala pouco, questiona os presentes. Pergunta-lhes pelo corpo do pobre herói, apresenta-se como detective real ao serviço da Scotland Yard. Apontam-lhe o Norte, uma qualquer estrada pelas rasteiras florestas Balcãs, é transportado com todo o rigor. É-lhe disponibilizado o melhor carro que a guarda tem ao dispor, um Chevrolet Master Deluxe de 1935, com toda a celeridade exigida pelo momento. Acelera a preto e branco pelo velho alcatrão esburacado, um nervoso miudinho anseia pelo encontro. Sente o coldre da sua Enfield no. 2 contra o quente do seu peito. Pensa na vida, na morte, na sua família e amigos. Em fim, um longo carro de matrícula britânica surge no horizonte, distinguem-se fardas de alta patente. O carro de um herói. Acelera, o momento está a chegar.
Cai o pano.
A escaramuça é curta e acesa, o sangue jorra abundante dos corpos moribundos. Os oficiais entreolham-se em dor, questionando-se sobre a identidade do misterioso britânico de cabelos grisalhos que roubou um chapéu, e partiu em direcção ao horizonte.

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