Publicada por
João
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15:58
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de contornos agudos, roncos sérios e determinação violenta, corria negro o céu de prata, choviam marés de sensabor água sobre a revolta maresia, outrora calma e doce quanto um domingo passado a navegar o rio, sem preocupações e ao desalento das correntes, que sempre levam a proa até ao mar.
mas não era isso que vislumbrava por entre as atlânticas marés ruidosas, ou seriam as tábuas a ranger, os pregos a saltar, o seu próprio navio a afundar, o seu capitão a temer porventura o Fim, a queda em tamanho infinito redemoinho de sal e vapor exalado pelas narinas carvão do furacão.
e assim temia, encostado a uma parede, não podia nada mais fazer, não pensava sequer na tripulação: podia ser o único que restava, e o capitão nunca abandona o seu navio; quer desça a voragem até ao grande final, morrendo na honra do desconhecido, ou sendo quebrado pelas ondas sem final, que já lhe entram pela cabina, já lhe cobrem o leme.
e o chumbo é absoluto, a dor que não termina, qual ferida deixada aberta nos céus, ofensas ao todo poderoso que ordenou o dilúvio, certamente: que fez o capitão, homem da escrita e da matemática, que fez para ter de prostrar perante a natureza como um simples infiel durante os bárbaros apedrejamentos recordados na sua viagem aos desertos do oriente.
homem viajado e letrado, de experiência inimaginável, preso entre quatro paredes: quatro paredes que metem água, impensável, só pensava para si.
e no entanto ali estava, prisioneiro do próprio destino, um destino em que nada significava a aventura ou a coragem, a sorte ou o azar, a confiança ou a determinação.
a chuva continuaria.
e por entre os contornos enevoados nada era visível senão a face da própria destruição, a representação pura do medo humano que tanto tempo o descreveram em monstros marinhos de incontáveis faces, de imparável força.
temores que ganhavam corpo e cresciam no plúmbeo céu das tempestades, erguiam-se, desfazendo rochedos, lançando ondas sobre costas desconhecidas, engolindo destemidos exploradores de um só trago.
sabia o capitão que mais cedo ou mais tarde lhe aconteceria o mesmo, sempre fora um homem de lógica e razão, mas tudo lhe fazia parecer que se movia no horizonte a sombra do tridente de Neptuno, ou as sete cabeças da Hidra que não tardar o iam mastigar como se de um animal se tratasse.
e num movimento perdido nas correntes de mares revoltos, certamente obra de uma qualquer personagem escamosa, desabou a cabina, desabou todo toda a ponte, desabou toda a proa, num imenso rugido de dragão; prostrava-se o céu azul estendido, no olho do furacão.
foi a última coisa que viu antes caír nas profundezas do que acreditava ser o fim. e não era tão diferente do que alguma vez imaginara.
acordou pouco depois numa pequena praia de uma falésia coberta de neve.
Quadro: Caspar David Friedrich - The Monk by the Sea
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