a caverna.

. domingo, 2 de janeiro de 2011





no horizonte distante prostravam-se montanhas, florestas, riachos e lagos sem fim. às estrelas não lhes era retirado o protagonismo pelo fogo ardente das cidades, ou a lua o calor afectivo das aldeolas e dos contos acendidos a carvão.


agradava-lhe a solidão, o silêncio, a natureza. a morte e a vida, o sol e a tempestade.
tudo tinha ficado, tudo tinha sido apagado. os livros pelas estantes, os documentos pelas gavetas, o dinheiro algures na lareira, talvez alto no céu, tão alto, de onde se visse a montanha que conhecia tão bem que já tratava por sua. talvez visse a sua floresta, o seu lago, a sua lua.
quando era pequeno, sempre quis ser um pioneiro, um explorador, um inventor. e tinha explorado aqueles campos melhor que ninguém: as primeiras e tímidas gotas rolavam pelos glaciares enquanto o inverno dava, a seu tempo, lugar às ferventes cores da primavera, o vale irrompia em fauna e flora até que o verão lhe aquecia o coração e os solos, por entre as colheitas e os frutos; o outono era época de melancolia, guardava as colheitas para o temível inverno, conservava a caça, e sorria.


sorria com o sorriso triste de um velho desconhecido, de um velho outrora poeta e hoje ermita, de um velho que da sociedade um dia se tinha decidido exilar. e continuava a sorrir enquanto a natureza se tingia de laranja e os ventos do árctico próximo gelavam tudo à sua passagem.
leves flocos de neve vertiam da infinita imensidão, tingindo-lhe a barba já grisalha, acalentando-lhe as cicatrizes já tão velhas quanto os seus netos seriam, se os tivesse.
recolhia à sua caverna, bem no coração da sua amada montanha, a rocha nua e fria aquecida pela sua fogueira, que há anos brilhava sem cessar, sem uma única falha; e nela aquecia a ponta dos dedos e a boca do seu velho cachimbo, uma das poucas coisas que ultrapassaram a barreira da civilização.
e, com a calma de uma vida acabada, de uma vida que corria como um infinito presente de recordações - uma vida sem fim ou início, sem nascimento ou morte, numa eterna velhice grisalha - observava ainda as estrelas todos os dias, ornamentava a caverna com um pinheiro em todos os solstícios de inverno e vertia uma lágrima em todas as auroras boreais. sonhava um dia mergulhar no grande azul celeste, onde as direcções se invertiam e onde as simetrias terrestres não mais faziam sentido, onde o silêncio é eterno e onde as pegadas nunca são apagadas.


os calendários e as horas perdiam todo o sentido por entre as montanhas rochosas, e os quilómetros de territórios virgens por ele palmilhados. os dias eram vividos, e não contados, as horas não eram mais que raios de sol - ou lua - que trespassavam a floresta.
a física, a biologia, a matemática não passavam de aproximações e experiências, de contas feitas esculpidas em troncos e tratados desenhados na neve. a cartografia não era mais que linhas desenhadas com sangue da caça por toda a caverna: montanhas, rios, planícies, tudo o que alguma vez encontrara.
e a cada risco sem destino espalhado pela rocha, cada vez mais pequena parecia a sua árvore, cada vez maior parecia o seu vale, cada vez mais compridos e severos pareciam os seus invernos, cada vez mais reduzida era a chama da sua fogueira e cada vez mais lágrimas vertia ao ver o imenso espalhar de íris no solitário e silencioso eternamente negro do Universo.

3 comentários:

Marta Gil disse...

Muito bom!

Marta Gil disse...

Igualmente para ti as felicitações enviadas.
Mas olha, fez-te bem este tempo sem escrever, este até dá vontade de ler em voz alta! Eu, pelo contrário, tanto tenho que escrever na fac que já nem o sei fazer. Estou a sofrer um processo de lento retrocedimento temporal, preciso de alguma coisa que me puxe pelo cérebro, deve ser a falta das ciências.

Beijinho

sónia disse...

uns são uns grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. no fim ficam a dever o café.
pobres diabos sempre com fome (...).

 

^